Por: Marco Antonio Spinelli* |
Nelson Rodrigues descrevia em suas crônicas as pessoas enamoradas de si mesmas com o termo: “Ele está em furioso enamoramento de si mesmo”. É um jeito muito divertido de chamar alguém de narcisista. Hoje as Redes Sociais não identificam o Narcisista apenas como alguém furiosamente enamorado de sua própria imagem, mas como pessoas egoístas, mesquinhas, manipuladoras. Isso chega no consultório, com denúncias do tipo: “Acho que meu marido é Narcisista”; “Eu tenho uma mãe Narcisista”; “Fiquei presa na cilada do Narcisista”.
O Narcisismo é uma dinâmica e um transtorno de Personalidade. São pessoas que tem um sentimento de auto-importância distorcido e desproporcional. Tem fantasias de sucesso ilimitado, acredita ser especial e único e exige, sempre, admiração excessiva. Acha que tem mais direitos que os meros mortais. Carece de empatia e tem atitudes e comportamentos arrogantes. O que? Você conhece alguém assim? Você é assim?
Sou capaz de jurar que a maioria esmagadora responde à primeira, mas não à segunda pergunta. É mais fácil identificar o Narcisismo alheio que o nosso, de cada dia. O mais incômodo é imaginar quantos portadores dessa personalidade Narcísica acabam atraindo uma fileira de seguidores e fãs. Alguns dispostos a abdicar de tudo para seguir essas pessoas como seres iluminados e realmente especiais. O que eu percebo clinicamente é que muita gente tem traços, mais ou menos numerosos, desse transtorno, mas não tem todas as características do espectro. O cara pode ser metido, arrogante, achar-se mais e melhor que os outros e, ainda assim, ser capaz de gestos de carinho e generosidade com as pessoas e familiares. Ou pode mandar invadir a Ucrânia. O fato é que dificilmente alguém que tem esse transtorno vai parar no consultório de um psiquiatra. Como um ser tão especial pode se submeter a um cara assim? Ele vai perceber como eu sou o cara?
Mas nem todo Narcisismo é ruim e nem todo Narcisista tem um Transtorno de Personalidade. Explico.
O Narcisismo é uma dinâmica de nosso aparelho psíquico. Ele se estrutura muito cedo em nossa vida, talvez desde a vida intrauterina. Estudos mostram que a gravidez onde a mãe e outras pessoas conversam, se interessam, fazem uma representação daquele ser que está em gestação, já começa a criar a díade Mãe/Filho e isso ajuda no posterior desenvolvimento cognitivo e emocional da criança. Ter uma boa imagem de si e ser apreciado pelas pessoas também ajuda a se criar um Narcisismo bem integrado e saudável. Outro dia vi uma criança esperneando e gritando porque sua mãe não queria comprar um pacote de cookies. Eu sou oriundo de uma família italiana, esse tipo de chilique eu sei bem como seria abordado. A mãe se ajoelhou, olhou nos olhos de sua filha com ternura e respondeu: “Eu sei que você vai ficar chateada, mas hoje não vamos levar o cookie, ok?”. A menina continuou resmungando, claro, mas aquela validação desarmou o escândalo. O Narcisismo bem trabalhado tem essa característica: eu te amo e valorizo sua tristeza, mas hoje não tem biscoito, ok? O Narcisismo disfuncional vai ser fabricado por essa Infantolatria que não pode, nunca, frustrar a pequena estrela de cinema que solicitou o cookie.
O contrário do Narcisismo, portanto, é a empatia. Colocamos as meninas para valorizar os caras confiantes, arrogantes e que se acham a última bolacha do universo. Depois vai denunciar nas redes sociais ter ficado presa na “cilada do Narcisista”.
Tem uma cena no fabuloso filme: “Sete Anos no Tibet” em que Brad Pitt faz o papel de um famoso alpinista alemão, preso durante a guerra nas montanhas do Tibet. Ele e seu amigo tem uma queda por uma bela habitante local. Brad Pitt, veja bem, Brad Pitt mostra para a moça a sua habilidade de alpinista, escalando e descendo de uma casa. Ela responde, educadamente, que ficar enaltecendo o próprio Ego é uma coisa bem broxante para uma moça do Tibet: as qualidades esperadas são generosidade, modéstia, empatia. Ela deu um pé na bunda do Brad e ficou com seu amigo, bem mais feinho, aliás. Você acha que essa moça iria cair na “cilada do Narcisista”?
Aposto que você está rindo, aí do outro lado da tela.
*Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiana e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”.